Lá por meados dos anos 1990, quando exercia o primeiro dos seus dois mandatos presidenciais, Fernando Henrique Cardoso cometeu um deslize que teve ampla repercussão: disse que os pobres vinham melhorando de vida e que estavam, inclusive, consumindo produtos como frango, iogurte e prosaicas dentaduras. A oposição, à época, fustigou o governo com discursos implacáveis; e não faltaram comentários irônicos da chamada grande mídia que, até então, exercia seu papel com mais inteligência e independência.
Naqueles tempos, pobre só consumia frango aos domingos. Era uma piada corrente, mas com inegável fundo de verdade. Afinal, os brasileiros emergiam de anos de hiperinflação – que, invariavelmente, penalizava os mais pobres – e, àquelas alturas, o salário-mínimo patinava em valores irrisórios, muito abaixo dos almejados 100 dólares que povoavam os sonhos da oposição.
Obviamente, essa penúria se refletia no cardápio das periferias. Muita gente suava para garantir o feijão, a farinha e, eventualmente, o arroz das refeições. Carne, peixe ou frango contracenavam nos dias de pagamento, festas ou em épocas de prosperidade transitória, que eram raras. O ovo era a companhia mais comum no prato do pobre e, exatamente por isso, ficou marcado por forte estigma.
Na década seguinte veio o espasmo petista de prosperidade: salário-mínimo crescente em termos reais, ampliação de benefícios sociais e políticas de transferência de renda focalizadas, a exemplo do Bolsa Família. Nesse período, pobre passou a comer carne – preferencialmente filé –, conforme jactava-se o ex-presidente Lula em seus discursos.
Passaram-se uns poucos anos de frenesi econômico, sobreveio a crise avassaladora e os pobres foram reapresentados àquela antiga companhia nas refeições: o ovo. Na Feira de Santana começaram a circular carros vendendo o produto e pode-se dizer que o carro do ovo se tornou o símbolo desses anos de recessão e de dificuldades para a outrora badalada “Classe C”.
Esses veículos circulam pelas imediações do centro da cidade, pela periferia e pelos bairros populares dentro do perímetro do Anel de Contorno; empregam potentes alto-falantes para alardear o produto; e utilizam como principal chamariz o preço altamente atrativo: 30 ovos custam irrisórios R$ 10; e, o que é ainda mais atraente, entregam o produto na mão, na hora, sem necessidade de sair de casa.
Não existem veículos padronizados: circulam antigas kombis, utilitários e mesmo automóveis populares, comprimindo a mercadoria em espaços minúsculos. Nos intervalos da propaganda, tocam canções gospel, arrocha ou sertanejo universitário. Muitos fazem roteiros determinados, retornando todas as manhãs para cativar a clientela.
Até nos bairros nobres de Salvador carros do ovo circulam: veículos muito semelhantes a esses que rodam pela Feira de Santana já foram vistos na aristocrática Graça e na elitizada Barra. Com direito, inclusive, a polêmica na imprensa, porque um desses veículos foi multado pela prefeitura soteropolitana. Pelo que se vê, o brasileiro vai emergir da crise em sintonia com antigos hábitos, como comer ovo com frequência nas refeições. Até aqui, nada retrata melhor a feroz crise econômica que o carro do povo.
As vendas natalinas na Feira de Santana não devem ser das mais favoráveis nesse 2016 que finda nos próximos dias. Simples observações pelas ruas da cidade indicam que o consumidor feirense está reticente, circulando muito pelas vias comerciais, mas aventurando-se pouco lojas adentro. Ressalte-se que a tendência não se verifica apenas aqui na cidade, mas em todo o País. Mais um desdobramento da terrível recessão que se arrasta há dois anos e que, por enquanto, não dá sinais de que vá arrefecer.
Todos os anos o comércio funciona em horário especial em dezembro, em função dos festejos de final de ano. É quando cresce o volume de consumidores e muita gente dispõe do décimo-terceiro salário como recurso extra. Daí o horário de funcionamento expandido, o que inclui jornadas especiais aos domingos. Em função do maior conforto, muitos preferiam comprar nessas datas.
Nos dois últimos domingos o comércio feirense funcionou. O fluxo de consumidores, comparado ao de anos anteriores, foi decepcionante. Tanto que muitas lojas sequer abriram: provavelmente, os empresários constataram que não está valendo apostar em clientes incertos, temerosos de assumir novas dívidas. Nas lojas que abriram, muitos comerciários passaram parte do dia ociosos, à espera de eventuais compradores.
Em três anos – a partir de 2014 – o mercado de trabalho feirense experimentou uma retração inédita: cerca de 10% daqueles que possuíam empregos formais perderam seus postos de trabalho. Isso para não mencionar as perdas, dificilmente estimáveis, ocorridas no mercado informal; nem a robusta compressão nos lucros de micro e pequenos empresários que ajudam a dinamizar a economia feirense.
Mercado consumidor
O declínio nas compras e as lojas desertas decorrem dessa violenta redução no mercado consumidor. E essa retração é mais intensa em função da crise prolongada demais, até mesmo para os padrões brasileiros. Em muitas situações, quem tinha alguma poupança dispersou-a e já não dispõe de reservas; e outros seguram suas reservas, receosos de que a recessão se arraste ainda por muito tempo.
Aparentemente, os negócios devem se aquecer nessa reta final, a partir do pagamento do décimo-terceiro salário. Mas não o suficiente para compensar as perdas significativas desse 2016 de intensas crises econômica e política. Há, também, a influência de um fator cultural: habitualmente, o brasileiro deixa tudo para a última hora, incluindo aí as compras natalinas. Assim, aproximando-se o Natal, as vendas devem ganhar algum fôlego.
Mas o fato é que, a exemplo do ano passado, 2016 foi um ano de intensas dificuldades econômicas. E, até aqui, 2017 desenha-se como menos promissor que já foi no passado: as expectativas indicam que a recuperação da economia deve ser lenta e que o mercado de trabalho só deve começar a reagir lá pelo segundo semestre. O PIB – Produto Interno Bruto não deve alcançar, sequer, ínfimo 1% de expansão.
Notícia boa só o expressivo recuo da inflação. Mas isso se deve, em grande medida, às estratosféricas taxas de juros e à própria recessão que desencoraja o consumo e, por consequência, segura a elevação dos preços. O cenário permanece nebuloso e, por enquanto, o País segue ansioso aguardando boas notícias. Sabe Deus quando é que elas virão...
Quem circula pela Feira de Santana vem notando: tem crescido o número de pedintes, mendigos, moradores de rua e outros deserdados pelo centro da cidade. Também vem se ampliando a quantidade de vendedores que circulam pelos ônibus, oferecem seus produtos pelas praças e avenidas ou que tentam arranjar-se como camelôs, confiscando espaços exíguos das vias públicas para exibir seus produtos. Tudo isso se deve à feroz crise econômica que assola os brasileiros há dois anos.
Mulheres maltrapilhas, com crianças de colo, voltaram a se tornar rotina nas portas dos bancos, na frente dos supermercados, na estação rodoviária ou em qualquer ambiente pelo qual circule gente com dinheiro. Sobretudo nesses dias que antecedem o Natal, quando os brasileiros embolsam o aguardado décimo-terceiro salário.
Nos pontos de ônibus os passageiros recorrem a variados contorcionismos para se desviar dos carrinhos-de-mão e dos vendedores que apregoam suas mercadorias aos gritos. Muitos ambulantes embarcam nos ônibus, descrevendo, aos berros, os produtos que oferecem. Nesses dias de calor insano, água e picolés figuram entre os mais populares.
À noite ou aos domingos é possível ver moradores de rua improvisando camas de papelão ali pela avenida Getúlio Vargas, defronte de lojas fechadas pela crise. Dormem sob marquises, catam papelão e lata, criam cães hostis e sorvem generosas doses de aguardente. Alguns conversam enquanto o sono não chega nas inquietas madrugadas feirenses.
Cortes
Nos anos de bonança muitos mantinham empregos modestos ou dedicavam-se a ocupações precárias que traziam alguma renda. Com a crise e o crescimento do contingente de excluídos, inúmeros deles perderam seus recursos e, forçados pela situação, foram viver na rua ou encorpar as fileiras dos autônomos e ambulantes. Tudo isso com elevada precariedade, conforme uma rápida inspeção pode constatar.
Para piorar, o novíssimo regime, instituído a partir da deposição do petismo, orquestrou uma série de investidas conta a assistência social no País. Reduziu o número de beneficiários do Bolsa Família, restringiu o seguro-desemprego e o seguro pago a pescadores, além de desidratar iniciativas que favoreciam a população carente, como o acesso a medicamentos mais baratos nas farmácias populares.
Além de afrontar os mais pobres, o governo demonstra incapacidade de resgatar o Brasil do atoleiro da recessão. Estão aí inúmeros indicadores para atestar. E estão aí as medidas anunciadas essa semana – cosméticas, em alguns casos, e insuficientes, noutros tantos – que não despertaram o entusiasmo, sequer, dos governistas mais exaltados.
Previsões otimistas sinalizam para o fim da recessão somente na segunda metade de 2017. Tomara que estejam corretos. E tomara que o governo atual – irremediavelmente alvejado no quesito ético – não constitua um empecilho adicional. Mas, hoje, tudo indica para o acirramento da crise política, com efeitos nefastos sobre a vida dos brasileiros – e feirenses - mais pobres.
Aqui e ali, diluídos no meio do noticiário, já surgem comentários sobre a possibilidade de Michel Temer (PMDB-SP) ser apeado do poder, da mesma forma que sua antecessora, Dilma Rousseff (PT). As razões variam: crime de responsabilidade no controverso episódio do edifício “La Vue”, em Salvador, irregularidades na prestação de contas eleitorais e, também, encrenca com as delações da operação Lava Jato. Temperando o mal-estar, a aguda crise econômica que, até agora, não dá sinais de que vá arrefecer no curto prazo. Indicativo que a instabilidade política vai se estender por 2017.
A oposição já se assanha, prometendo protocolar pedido de impeachment na Câmara dos Deputados. No momento, a iniciativa parece fadada ao fracasso: o polêmico presidente conta com base ampla e o pedido não deve prosperar. Mas ninguém sabe até quando essa tranquilidade deve prevalecer, sobretudo em função do cenário econômico adverso e das escassas medidas de curto prazo para reverter a recessão. Isso para não mencionar a eloquente impopularidade do mandatário.
Eleições diretas estão descartadas: elas só seriam convocadas se Michel Temer deixasse o poder agora em dezembro, o que é uma hipótese remota. Caso vingue alguma razão para o afastamento, caberá aos deputados eleger o “presidente-tampão”, cujo mandato expira em 2018. Mesmo assim, a atual oposição – que era governo até outro dia – anima-se com a hipótese.
Desesperador é pensar no perfil dos potenciais eleitores do “presidente-tampão”: os mesmos deputados que referendaram a rasteira do impeachment de Dilma Rousseff. É difícil imaginar que, dessa barafunda, não saia alguém comprometido com o consórcio das bancadas do dízimo, da bala e do boi. Ou com a arraigada cultura fisiológica do chamado “centrão”.
Ditadura?
Não é improvável que, do lodaçal político no qual o Brasil enveredou, não saia, como mandatário, um religioso desvairado ou um radical da extrema-direita. Tudo é possível, desde que o País optou por rifar a chamada “Nova República” e a incipiente e imatura democracia. Migraríamos, portanto, de um cenário de crise intensa para uma catástrofe sem subterfúgios.
Michel Temer herdou a presidência como beneficiário de uma manobra sórdida. Jamais alcançaria o posto pelo voto popular e os baixíssimos índices de popularidade atestam sua rejeição. Mas, até pelo seu temperamento hesitante, dúbio – frouxo mesmo –, não parece alguém talhado para exercer o poder de forma discricionária. É figura de balcão, de manobra miúda, de espertezas rasteiras.
No salseiro que pode se seguir à deposição de Michel Temer – caso ocorra –, todavia, pode emergir alguém com o perfil exaltado por muitos desvairados de redes sociais. Um redentor, envolto no surrado discurso da ética para consumo externo. Pelo mundo pululam exemplos de guinadas à direita, com ranço xenófobo e totalitário. Por que o Brasil permaneceria imune?
Quem peleja pela deposição de Michel Temer deveria refletir sobre esse cenário. É claro que, eventualmente, esse retrocesso pode ser apenas retardado, emergindo das urnas em 2018.Mas o fato é que, hoje, o mundo se parece cada vez mais com aquele que se seguiu à Grande Depressão nos anos 1930 e arrastou a humanidade para o maior conflito de todos os tempos na década seguinte...
Mais um Natal se aproxima e as perspectivas não são muito promissoras para os negócios, conforme indica o noticiário. Tudo por conta da crise econômica que ainda se aprofunda e à crise política que está longe de um desenlace definitivo. Faltam cerca de 40 dias e a tradicional decoração natalina – muito comum já em meados de outubro nos anos de prosperidade, de consumismo desenfreado – ainda é tímida nas ruas. Os pinheiros plásticos, a neve de algodão e o tradicional Papai Noel de barbas brancas ainda são raros nas vitrines feirenses.
Ano passado a crise tragou cerca de 6,5 mil empregos na Feira de Santana. Embora tenha perdido ímpeto ao longo de 2016, os estragos seguem intensos, mesmo após o início do governo de “salvação nacional” de Michel Temer (PMDB-SP). Com tanta gente fora do mercado de trabalho, a perda de dinamismo no comércio é natural.
As agruras, porém, não se esgotam com a redução no estoque de empregos formais. As recentes – e intensas – oscilações na cotação do dólar, por exemplo, produzem efeitos reais sobre a vida dos brasileiros, que podem ser constatados pelas ruas, com a elevação dos preços dos produtos importados.
E, como se não bastasse o calvário que o Brasil atravessa, com quiproquós políticos e econômicos entrelaçados, surge agora a notícia da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. Imprevisível, o empresário lançará incertezas que elevarão a cotação do dólar e, possivelmente, as taxas de juros nos próximos meses.
Feiraguay
Essa conjuntura adversa, certamente, vai produzir impactos sobre o comércio e os serviços na Feira de Santana já a partir dos próximos dias. Com a elevação do dólar, por exemplo, o efeito é reconhecidamente óbvio: à medida que a moeda americana se valoriza, os preços dos produtos importados sobem, tornando-se mais caros para os consumidores brasileiros.
No Feiraguay os preços tendem a se elevar, com riscos de impactar sobre as compras natalinas. À exceção, claro, daqueles comerciantes prudentes que já compuseram seus estoques para o período, neutralizando o risco de elevação do valor da moeda norte-americana. Quem comprar a partir daqui já vai experimentar o “efeito Trump” sobre o câmbio.
Outrora fervilhante meca dos consumidores da afamada classe C, o entreposto amarga resultados desfavoráveis desde meados de 2014, quando o dólar começou a experimentar uma elevação persistente. Desde então, as turbulências se intensificaram e comerciantes estimam retração que supera os 30%, em alguns casos.
Sales Barbosa e Senhor dos Passos
Embora menos exposto aos humores do câmbio, o comércio tradicional da Feira de Santana também deve vergar com o Natal mais magro de 2016. Afinal, as contratações temporárias para o período ainda são tímidas, refletindo as expectativas negativas dos empresários. Exatamente como ocorreu em 2015.
Além da ausência da decoração – presente em todas as vitrines nos anos de prosperidade – a publicidade natalina é muito discreta também. Com base na experiência do ano passado, tudo sinaliza que só deve se intensificar quando o décimo-terceiro salário começar a pingar na conta dos trabalhadores.
O que há de pior em relação ao ano passado é que alguma poupança acumulada nos anos anteriores, de relativa prosperidade, já se desfez, com o prolongamento da crise. Apostava-se que no fim desse ano se enxergariam os primeiros sinais da retomada que, até aqui, não se confirmou. Lançam-se as esperanças, portanto, para 2017.