Quem se aventurava a cortar os inóspitos sertões nordestinos, lá por meados dos anos 1990, recorda bem a penúria em que viviam os pequenos municípios da região. Isoladas na profusão de espinhos de mandacarus e xique-xiques, castigadas pelo sol inclemente, expostas aos rigores das estiagens frequentes e ao fantasma da escassez hídrica, essas pequenas cidades só ganhavam as manchetes quando figuravam nos periódicos decretos de situação de emergência. Ou quando legiões de famélicos saqueavam os armazéns dalgum próspero comerciante.
À época, o Brasil atravessava outra quadra áspera, na qual o receituário do Fundo Monetário Internacional, o FMI, tinha valor de sanção canônica. A pobreza e a exclusão, as profundas desigualdades sociais – jamais atenuadas – e a candente questão do desenvolvimento regional eram temas banidos naqueles anos. Afirmava-se, com sólido saber doutoral, que o livre funcionamento dos mercados resolveria todas essas questões.
Sob o petismo, as campinas sertanejas seguiram ásperas e os grandes temas subnacionais continuaram encobertos, mas a feliz e inesperada convergência de políticas contribuiu para uma espécie de “redenção” dos sertões ignaros. A implantação de políticas de transferência de renda (como o Bolsa Família), a elevação do valor do salário-mínimo e a ampliação do acesso à aposentadoria rural produziram um inédito frenesi de consumo que alavancou as pequenas economias locais.
Os impactos foram notáveis: casebres cobertos por palhas ou telhas velhas foram substituídos por casas espaçosas, arejadas e cobertas por telhado novo; eletrodomésticos incorporaram-se à rotina familiar; o cardápio diversificou-se e pratos antes inacessíveis multiplicaram-se pelas mesas de jantar; viagens e luxos modestos tornaram-se possíveis; e, quem pôde, comprou um carro ou uma motoneta.
Acostumados às incessantes agruras, muitos se espantaram com aquela prosperidade abrupta. Milagre de Padre Cícero? Não, apenas a materialização de um direito que teimava em não sair do papel. Brasil afora, crescia a indignação dos que mimetizavam os patrões, enxergando naquilo um privilégio inadmissível, exigindo passeata e manifestações de rua.
Para êxtase dessa gente, o “privilégio” vai minguar, definhar até se extinguir. No seu epitáfio constará, claro, a PEC 241. Coisa urdida pelos esfoladores da democracia, sob orientação dos rentistas internacionais, aquela turma do FMI que retorna com força total. Pajeando a curta distância, festiva, mas com as mandíbulas à mostra, enxerga-se a grande imprensa.
O leitor desatento talvez esteja estupefato: qual relação de causa e efeito entre a PEC 241, a do “teto dos gastos” e a hipotética derrocada dessa incipiente pujança econômica dos pequenos municípios nordestinos? Muito simples: no longo prazo, o objetivo é comprimir o valor do salário-mínimo e, mais ainda, dos benefícios sociais que alavancam a economia dos lugares sertanejos. Com menos recursos o efeito será, obviamente, um longo e doloroso processo de retrocesso econômico.
Some-se a isso a contínua redução nos valores que serão repassados à educação e à saúde às prefeituras desses municípios. As já escassas oportunidades de trabalho tendem a desaparecer; pobreza e miséria crescerão; muitos serão forçados a migrar, novamente, para as grandes metrópoles brasileiras. É mais uma faceta do retorno ao passado que se desenha para o País.
A turma da língua em riste costuma defender labor, empenho, produtividade como receita universal. Funciona no circuito do pretenso ativismo de rede social, mas não ajuda em nada a entender a complexa realidade social brasileira.