“Eu confio em você, mas não confio nos outros”. “Mulher minha não sai sozinha”. “Se você não for minha, não vai ser de mais ninguém”. Frases como estas podem ser sinais de alerta de relacionamentos abusivos ou violentos. Apesar dos muitos avanços, especialmente após a instituição da Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, os números ainda são assustadores.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil é o quinto país do mundo em número de feminicídios, ou seja, de assassinatos de mulheres motivados por violência doméstica ou discriminação de gênero. No ano passado, 536 mulheres foram agredidas, por hora, em território nacional.
De acordo com o Ministério da Saúde (MS), o número de notificações de agressões físicas contra mulheres quase quadriplicou, entre os anos de 2009 e 2016. Segundo informações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2014, apesar de 91% dos entrevistados afirmarem que homens agressores deveriam ir para a cadeia, 63% acreditavam que casos de violência doméstica deviam ficar apenas “na família” e 89% achavam que “roupa suja se lava em casa”.
A pedido do FBSP, o Instituto Datafolha ouviu, em fevereiro de 2019, mais de mil pessoas do sexo feminino sobre violência contra a mulher. Os números mostraram que 42% afirmaram já terem sofrido agressão e, em quase 24% dos casos, pelos próprios companheiros, namorados ou responsáveis.
A violência contra a mulher se dá de diferentes formas. Além da física, há a violência patrimonial, sexual, moral e psicológica, de acordo com a Lei Maria da Penha. Conforme o Mapa de Violência de Gênero (referente ao ano de 2017, mas divulgado esse ano), na Bahia, foram registrados 2.731 casos de violência contra a mulher, sendo que 1.069 aconteceram dentro de casa.
As estatísticas mostram que as próprias residências são os locais mais perigosos para as mulheres baianas. Do total, 41% delas afirmam que foram agredidas pelos próprios maridos, namorados ou companheiros. 31% revelam que as agressões partiram de ex-maridos, ex-namorados ou ex-companheiros. O que chama a atenção é que apenas um terço das mulheres diz ter acionado o Estado.
Em 2018, a Bahia registrou 70 feminicídios, em todo o seu território, de acordo com dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP-BA). Comparando com 2017, houve um aumento de 6,1%, quando as estatísticas apontaram 66 feminicídios. Em nível nacional, esse número também cresceu. Foram 1.173 assassinatos de mulheres, no ano passado. Em 2017, houve 1.047 casos.
NÚMEROS EM FEIRA – Até o dia 10 de novembro de 2019, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) registrou 2.962 ocorrências de violência, sendo a maioria de ameaças: 1.221 casos. O órgão também recebeu denúncias de 491 casos de lesão corporal e 61 estupros. Com relação a esses números, o que mais chama a atenção é o fato de apenas 13 estupros terem sido cometidos por pessoas estranhas. As demais ocorrências dão conta de que a violência sexual aconteceu entre casais. Até o fechamento dessa reportagem, constatamos que foram registrados apenas dois casos de feminicídios, ao longo do ano, o que representa uma redução, já que, em 2018, aconteceram cinco casos, no mesmo período.
A titular da Deam, Edileuza Suely Gomes, acredita que as campanhas têm contribuído para a redução do número de homicídio de mulheres. “E não apenas isso, mas também as denúncias, as respostas efetivas e rápidas, as medidas protetivas, que têm dado uma resposta imediata, colocando o autor atrás das grades”, avalia a delegada.
QUEIXA – Para registrar uma queixa de agressão, basta a vítima se dirigir à Delegacia da Mulher, que, em Feira de Santana, fica situada na Rua Adenil Falcão, 1.252, bairro Brasília. A delegada explica os passos após a denúncia. “Depois de registrada a ocorrência, uma audiência é marcada. O autor, então, é intimado e vai haver um processo. Mas se a mulher estiver em uma situação de emergência, pode ligar para o 190 e pedir à Polícia Militar (PM) que atenda de imediato”, informa.
No que diz respeito à medida protetiva, ela pode ser solicitada durante o registro da queixa. “A medida protetiva é um mecanismo legal que tem por objetivo oferecer uma proteção imediata às vítimas em situação de risco. Esse dispositivo veio com a inovação da Lei Maria da Penha. A mulher vítima de violência pode, durante o atendimento na delegacia de polícia, solicitar as medidas de proteção que estão previstas no artigo 22 da Lei, que são de caráter liminar e cautelar, no sentido de evitar outra violência. Quando o autor da agressão descumpre a medida protetiva dada pelo juiz, estando devidamente intimado (ele tem que ter essa informação prévia), isso configura crime de desobediência, cabendo, inclusive, a prisão preventiva, a fim de assegurar a conveniência da instrução criminal”, explica.
Atualmente, 464 mulheres estão com medidas protetivas, no município. E elas contam com o importante apoio do Projeto Ronda Maria da Penha, da Polícia Militar, que atua como mecanismo de defesa no combate à violência doméstica e familiar. “A Ronda Maria da Penha é informada quando a medida protetiva é expedida pelo juiz. Vai, então, ao encontro da vítima e do autor, que é advertido sobre a obrigação de cumprir tudo o que foi especificado pela autoridade judicial, sob pena de ser preso. São feitas constantes visitas à residência da vítima, a fim de saber se o agressor continua infringindo a Lei. Caso isso esteja ocorrendo, a delegacia é notificada”, esclarece a titular da Deam.
Destacando a grande quantidade de estupros praticados por namorados e companheiros, a delegada Edileuza Suely Gomes enfatiza que, apesar de se tratar de um crime de difícil comprovação, a mulher deve denunciar a prática sexual sem concordância. “Sexo sem o consentimento da mulher é considerado estupro. Temos muitos casos registrados, na delegacia, em apuração. A violência sexual nem sempre deixa marcas, por isso é um crime de difícil prova. Mas se a mulher registrar queixa, emitimos uma guia, para que ela se dirija ao Departamento de Polícia Técnica (DPT), a fim de realizar o exame de corpo de delito. Caso não tenha ficado vestígio da violência, recorremos a um relatório emitido por psicólogo, que possa, no comportamento da vítima, apontar sinais de abuso e violência sexual, porque, dificilmente, esse tipo de crime tem testemunha. No entanto, apesar de ser difícil provar, isso é possível sim”, salienta.
CENTRO DE REFERÊNCIA – Em Feira de Santana, o principal órgão de acolhimento de mulheres agredidas é o Centro de Referência Maria Quitéria (CRMQ), que está subordinado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Nele, a vítima é atendida independentemente de ter prestado queixa na Delegacia da Mulher.
A coordenadora da instituição, Josailma Ferreira Lima, explica que a rede de proteção à mulher, no município, tem serviços 24 horas, como a Deam, hospitais e locais de abrigamento. Já o CRMQ funciona de segunda a sexta, das 8 às 17 horas.
Desde a implantação do Centro, em 2010, quase 3 mil mulheres já foram cadastradas, mas nem todas continuam sendo acompanhadas pelo órgão, segundo a coordenadora. “Acompanhamos parte delas, porque, após a escuta, algumas passam a ser assistidas por psicólogos e outras são encaminhadas a outros serviços. Além disso, não contamos com uma casa de acolhimento, onde as mulheres possam pernoitar ou passar um tempo. O que temos é um serviço de abrigamento, que, atualmente, foi regionalizado e vinculado também ao Estado. O acesso a ele se dá após o registro da ocorrência, através da central”, esclarece.
Josailma Lima salienta ainda que qualquer mulher com mais de 18 anos e vítima de violência doméstica pode procurar o Centro Maria Quitéria. “O atendimento psicossocial é o primeiro contato. A partir dele, são identificadas as demandas. Após isso, redirecionamos a vítima. E aí a gente conta com psicólogo, serviço social, jurídico e pedagógico, de forma individualizada”, detalha.
A coordenadora ressalta que a instituição trabalha com informações sobre que é a violência e seu ciclo, também orientando sobre direitos e proporcionando o resgate da autoestima. Tudo isso através de palestras, grupos de convivência e oficinas. “Realizamos, ainda, atividades pedagógicas com as crianças, enquanto suas mães estão sendo assistidas”, informa.
O CRMQ trabalha em conjunto com outras instituições, a exemplo de movimentos sociais e Defensoria Pública (DP), atendendo mulheres vítimas de violência doméstica e vítimas de estupro praticado por desconhecidos.
ASPECTOS SOCIAL E PSICOLÓGICO – A mulher vítima de agressão é vista de diferentes formas. Para a assistente social Patrícia Lavini, o machismo faz com que atitudes violentas ainda sejam justificadas, tanto por homens quanto por mulheres. “Vivemos em uma sociedade na qual existe a predominância do machismo, então, muitas vezes, os homens (e até mesmo as mulheres) vão apoiar qualquer tipo de conduta abusiva. Mas a mulher que sofre violência, que é vitima de violência doméstica, é vítima como uma mulher que se submete a algumas condições do relacionamento ou da família para tentar manter a união e conviver com o indivíduo agressor”, explica.
Ela acredita que algumas pessoas ainda veem a mulher vítima de violência como alguém fraco ou que sofreu violência “porque quis ou procurou”. No entanto, ressalta que esse panorama vem mudando, em Feira de Santana. “Hoje, também há outra percepção. As pessoas estão começando a ver a mulher que denuncia a agressão sofrida como alguém que está quebrando o ciclo, que está quebrando o silêncio, que está expondo sua vida para garantir seu direito de sobrevivência”, observa.
No aspecto psicológico, a psicóloga Milena Pérsico salienta a necessidade que a vítima tem de ter apoio, nos mais diversos segmentos. “Entendemos que a violência passa por um ciclo: que vai desde a violência psicológica, passando por restrições e violência física, até a ‘lua de mel’, espécie de fase de reconquista, onde são feitas promessas de que a agressão não se repetirá. Por isso, uma mulher vítima de violência precisa ter apoio familiar, social e jurídico. Além disso, muitas vezes, as medidas protetivas são imprescindíveis. O suporte psicológico, tanto para a mulher quanto para as crianças, se houver filhos, também é muito importante. Isto porque, além dos traumas sofridos pela própria violência, há também a elaboração do luto, pelo fim do relacionamento, e a construção e busca pela independência financeira e emocional dessa mulher”, pontua.
As sequelas causadas pela violência são inúmeras, de acordo a psicóloga. “Estamos falando de agressões, às vezes, sutis, que são socialmente consideradas ‘normais’, visto que vivemos em uma sociedade machista. A violência afeta a autoestima da mulher, cerceia seu direito de pensar e ser como deseja. As violências física e sexual deixam marcas no corpo e na alma. Mas é importante considerar que cada sofrimento é vivido de maneira bem particular”, frisa, ressaltando que, sim, é possível se livrar do trauma psicológico, mas que, para tanto, políticas públicas são fundamentais, funcionando como uma rede de apoio à vítima, aos filhos e até ao próprio agressor.