-
Olha, se eu pudesse, eu ia embora disso aqui. O problema é que eu já passei dos
quarenta, não tenho para onde ir e acho que ninguém vai me aceitar lá fora.
Quando eu era mais jovem, acabei me empolgando, achando que isso aqui tinha
jeito, que estava mudando, melhorando. Conversa! Vira e mexe, a gente repete o
passado...
Ficou
calado durante alguns instantes, o olho muito aberto, fitando os transeuntes. Parecia
que o filme da vida dele ia passando diante dos seus olhos. E, o que era pior,
o filme da vida que poderia ter sido, mas que não foi, nem poderá ser. Com a
máscara encobrindo a boca e o nariz, os olhos se sobressaÃam, refletindo talvez
o lábio contraÃdo numa expressão de contrariedade, a respiração ofegante.
-
Até passei no vestibular para História. Fiz uns semestres, aprendi o suficiente
para saber como é que as coisas funcionam neste paÃs. Mesmo assim, não pensei
no futuro, pelo menos não neste futuro que podia repetir o passado. É nele que
estamos...
Conjecturei
alternativas, enquanto os pombos sobrevoavam o calçadão do Novo Centro. Especulação
inútil: sair como, com obrigações familiares, dinheiro escasso, sem dominar bem
outros idiomas? Que tipo de emprego conseguiria? Gente para desempenhar funções
braçais não falta. Pior: jovens, dispostos a topar qualquer parada. Sem chance.
Nuvens
encardidas iam avançando pelo céu da Feira de Santana. Contracenavam bem com aquele
papo sombrio. Confessou que, finalmente, entendia a angústia dos que se
insurgem contra as ditaduras, os regimes de exceção. O problema é que lhe falta
serenidade para encarar esses tempos tormentosos mantendo o equilÃbrio. "A fria
objetividade", gracejei, resgatando uma expressão antiga, comum às esquerdas naqueles
tempos.
-
Vamos virar a Venezuela - Arrisquei a piada sem graça, que às vezes traz uma alarmante
sensação de premonição.
-
Muito pior. Do jeito que vai, uma republiqueta da América Central. Se não vier
coisa ainda pior por aà - Comentou, encerrando o papo. Até marcamos uma cerveja
para quando a pandemia arrefecer. Isso se, até lá... enfim...
O
sol se firmou na tarde de outono, radioso, mas as sombras daquela conversa se estenderam,
obscurecendo a paisagem. É duro encontrar gente - da mesma geração que eu - com
essas ideias, com esses receios. Sobretudo porque, no Brasil atual, é bom
esperar o pior; e esse pior, no fim, sempre supera as expectativas mais
nefastas.
Espero reencontrar o colega
de longas conversas nos tempos de militância estudantil. Torço para que, entre
cervejas, possamos rir dos temores que hoje nos assolam. Mas imagino que não vai
ser fácil. Há uma longa travessia - diária - até lá...