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Cultura

Amélio Amorim e a fantasia concreta que remodelou o sertão

Ísis Moraes - 14 de Dezembro de 2018 | 12h 28
Amélio Amorim e a fantasia concreta que remodelou o sertão
Foto: Reprodução

Meados da década de 1950. Um jovem e talentoso arquiteto começa a remodelar o perfil arquitetônico da terra que escolheu para viver. Homem à frente de seu tempo, Amélio Amorim desafiou as correntes de pensamento de sua época e inseriu Feira de Santana, até então provinciana, dona de uma paisagem que unia, harmonicamente, o cenário rural a um imponente casario de estilo eclético, na atmosfera moderna vivenciada nacionalmente, reflexo das convulsivas mudanças iniciadas, dois séculos antes, em terras europeias.

“Amélio é um dos arquitetos mais importantes de Feira de Santana. Influenciou todas as gerações que o sucederam. Criativo e sempre em sintonia com as novas tendências nacionais e mundiais, foi o pioneiro do modernismo na cidade. E é justamente essa visão modernista que marca a sua obra. Mas ele nunca deixou de lado o regionalismo, sempre procurando criar projetos adequados à realidade da região, introduzindo em construções materiais característicos do cenário sertanejo. Daí ter se tornado um referencial para a categoria”, avalia o arquiteto e artista plástico Juraci Dórea.

Filho do casal João Amorim e Maria Otília Teixeira de Amorim, Amélio nasceu em 21 de abril de 1929, na cidade de Coração de Maria. Desde a infância, revelou-se um desenhista talentoso. Das mãos hábeis e visionárias do jovem arquiteto, nasceram projetos inusitados, revolucionários, como a casa suspensa, localizada na Avenida Getúlio Vargas, construída em plano elevado, sobre pilares que a mantém distante do solo.

Símbolo de arrojo e genialidade, o nome de Amélio Amorim ficou conhecido em todo o país. O arquiteto realizou importantes projetos em várias cidades brasileiras, como é o caso das 400 casas que planejou para a cidade de Ilha bela, no litoral paulista. Também é de sua autoria uma imponente residência situada em Londrina, no Paraná, famosa pelo belo painel que ornamenta a sua fachada.

Em Feira de Santana, trabalhando com os calculistas Alberto Santana e Renée Otávio Dantas, que o acompanharam durante toda a sua vida profissional, Amélio executou uma série de projetos brilhantes e inovadores, que revolucionaram os conceitos de cidade e moradia. Um novo modelo de construção começa a se delinear a partir do momento em que o arquiteto começa a atuar no município.

INÍCIO – Em 1956, o arquiteto inicia a sua carreira com a concepção da Galeria Caribé, localizada na Praça da Bandeira, e com a residência de Francisco Fraga Maia, primeira casa que projeta na cidade. Posteriormente, executa o projeto da Casa das Lâmpadas, do empresário Lício Silva, na esquina da Rua Direita, atual Conselheiro Franco. O edifício, bastante moderno para a época, ainda existe, embora descaracterizado, como tantos outros prédios feirenses desrespeitados pela voracidade imobiliária.

De espírito inquieto e imaginação fértil, Amélio buscava inovar constantemente. Altamente criativo, muitas vezes excêntrico, imaginava projetos grandiosos e transformava em arte tudo o que chegava às suas mãos. Em 1965, o arquiteto deu vida ao Clube de Campo Cajueiro, construção arrojada, que tem como destaque um grande salão circular, cujo teto não apresenta pilares de sustentação ao longo de seu vão. Além de moderno, o projeto se destacava pela plasticidade ímpar.

Vanguardista, determinado, ávido por conhecimento, Amélio Amorim percorreu o mundo, absorvendo novos conceitos e buscando inspirações para construir o que ninguém ainda havia edificado. Fez vários cursos fora do país. Em Lima, capital do Peru, cursou jardinagem e decoração. Queria oferecer, aos clientes, mais que meros jardins. Fazia questão de elaborar e de acompanhar de perto todo o processo de construção. Tinha, em torno de si, uma equipe numerosa, composta por profissionais extremamente reconhecidos e valorizados por ele.

CARRO DE BOI – Empreendedor destemido, Amélio recorria a todo tipo de técnica e de material para concretizar uma ideia. Sonhava executar, integralmente, o projeto do Hotel e Restaurante Carro de Boi, grande obra de sua vida, que imortalizou seu nome e sua história. Projetado para abrigar um importante polo turístico, o Complexo Carro de Boi não chegou a ser concluído. A morte precoce, aos 53 anos, provocada por um acidente automobilístico, ocorrido em 15 de maio de 1982, impediu o arquiteto de levar o empreendimento adiante.

Em vida, ao lado de sua amada Irma Amorim, escritora e produtora cultural, Amélio viu parte de seu projeto ser reconhecido. O Restaurante Carro de Boi e a Boate Jerimum, trabalhos que marcam uma das fases mais excêntricas do arquiteto, saem da prancheta para se tornarem as principais áreas de lazer da cidade, bastante frequentadas pela sociedade baiana. Nos dois prédios, hoje pertencentes ao Governo do Estado e agonizando em ruínas, Amélio Amorim empregou técnicas altamente modernas, aliadas ao uso de materiais rústicos, característicos do Sertão.

O arquiteto utilizou madeira, para forrar o chão, e piaçava, para cobrir o teto e as passarelas do Carro de Boi, no qual realizou a I Feira de Arte Total, em parceria com o cordelista Franklin Maxado. A mostra, que foi um sucesso de público, reuniu, durante dez dias, todas as modalidades artísticas existentes em Feira de Santana, vindo a se tornar um referencial da cultura local.

Na boate, arquitetura e escultura se entrelaçavam. Projetada em formato de abóbora, modelada em cimento, ganhou também uma magnífica pista de vidro colorido. E, pela primeira vez, Amélio experimentou a bucha natural, muito comum na região de Feira, como isolante acústico.

ODEBRECHT – Arquiteto por vocação, ele chegou a passar no vestibular de Direito, como queria o pai, mas não se matriculou. Queria projetar casas e edifícios. Insistiu e acabou passando no vestibular para o tão almejado curso de Arquitetura. Poucos meses depois, tornou-se empreiteiro de Odebrecht, cargo que conseguiu de maneira incomum.

Impetuoso, Amélio foi até o empresário e disse que queria trabalhar em sua construtora. Diante da recusa, que veio sob a alegação de que não havia emprego para lhe ofertar, Amélio foi incisivo. Ao afirmar que estava pedindo um trabalho e não um emprego, porque queria, unicamente, aprender, Odebrecht o aceitou como estagiário.

Por opção, o jovem estudante de arquitetura foi trabalhar no canteiro de obras, como ajudante de pedreiro. Queria vivenciar a prática que a faculdade não lhe dava. Ao saber do fato, Odebrecht o contratou. Antes mesmo de se formar, montou um escritório na famosa Rua Chile, em Salvador. A clientela foi conseguida com a ajuda de Soledade, mestre de obras que veio com ele para Feira de Santana, com o objetivo de montar a Casa São Cosme, loja de materiais de construção criada para fornecer tudo o que fosse necessário às suas criações.

A atuação de Amélio Amorim qualificou a profissão de arquiteto no município. A partir dele, é que as consultas arquitetônicas começaram a surgir. Antes, a maior parte dos projetos era feita pelo engenheiro J. J. Lopes de Brito, que delineou o traçado de rua que Feira de Santana tem até hoje.

Pela genialidade, coragem e pioneirismo, a cadeira de Amélio Amorim na Arquitetura continuará vazia, inabitada, como a cadeira do velho álbum de fotografias de sua família, reservada para ele, em todas as ocasiões, como símbolo de sua importância e eternidade. Feira de Santana, ao contrário, segue sendo ingrata com o dono daquele “olhar de Tempo Azul” (cristalizado em um belíssimo poema da saudosa Irma), que, através de sua fantasia concreta, remodelou e reinventou o sertão.

Mais que um antigo projeto, mais que uma exótica construção em ruínas, é o seu sonho (espelho de nossa identidade cultural) que se esboroa nas dependências do Centro de Cultura que leva o seu nome, esperando que o Estado o resgate da vala do esquecimento institucional. Cultura é memória. E, mais do que nunca, essa cidade precisa mantê-la viva.



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