Faz tempo que a produção de cana-de-açúcar foi abandonada às margens da BR 324. Durante anos, enormes extensões de terra permaneceram improdutivas, acumulando vegetação daninha. Ultimamente duas atividades estão ocupando estes espaços, não apenas na BR 324, mas avançando Recôncavo adentro: as tradicionais pastagens para engorda de gado e o cultivo de eucaliptos, destinados às indústrias de papel e celulose.
Desde o abandono dos canaviais – isso aconteceu há quase dez anos – que, passando por ali, vem à memória textos do geógrafo baiano Milton Santos e suas propostas para a região, que ele batizava como Grande Recôncavo. Destacava-se a produção de alimentos por pequenos produtores – basicamente agricultores familiares – para abastecer os mercados urbanos próximos, como Salvador, Feira de Santana, Santo Amaro, Cachoeira.
Para Milton Santos, a produção de alimentos no cinturão do Recôncavo – o Grande Recôncavo – atenderia a uma série de demandas estratégicas: abasteceria Salvador, reduzindo os preços de alimentos para os trabalhadores, tornando a capital mais atrativa a investimentos industriais; garantiria regularidade na oferta de alimentos, reduzindo tensões provocadas pela carestia, que afetava sobretudo os mais pobres.
Haveria mais benefícios: a integração entre o campo e a cidade, fortalecendo os fluxos econômicos internos e diminuindo a dependência de fornecedores distantes; a dinamização da economia rural, com geração de trabalho e renda, o que, indiretamente impactaria sobre a migração do campo para Salvador, que naqueles anos – década de 1960 – já hipertrofiava-se.
Bom lembrar que, para Milton Santos, o arranjo não se destinava só a gerar ganhos econômicos, mas também a fortalecer o planejamento territorial e, sobretudo, produzir justiça social. Em suma, as ideias do geógrafo baiano constituíam o roteiro de um projeto de desenvolvimento regional alicerçado em inclusão social e dinamismo econômico.
Como se sabe, os anos passaram e nada saiu do papel. Melhor dizendo: sequer foi ao papel, porque as ideias jamais foram efetivamente incorporadas ao planejamento governamental. Afinal, no Recôncavo o protagonismo era da cana-de-açúcar e do fumo, produtos destinados aos mercados externos, amparados em grandes propriedades rurais.
Ao longo das décadas, primeiro o fumo e, depois, a cana-de-açúcar, perderam o protagonismo econômico. Abriram-se, portanto, duas janelas para a discussão sobre assentamentos, fortalecimento da agricultura familiar e produção de alimentos mais baratos para as dezenas de cidades do entorno. Mas as janelas foram perdidas e os governos sequer se mexeram. Abordar a questão – imagino – talvez pareça, hoje, comunismo ou delírio.
Mas o fato é que, com planejamento, certamente o Grande Recôncavo produziria alimentos baratos que encadeariam uma espiral virtuosa, tornando a vida de milhões de baianos – direta e indiretamente – melhor. Haveria menos fome, menos pobreza, mais trabalho e mais riqueza.
“São devaneios de sexta-feira”, dirá quem lê, com certeza. Mas a sexta-feira é dia propício para devaneios. Ainda mais esta, que sucede a histórica condenação do magote de golpistas pelo Supremo Tribunal Federal...
Muitos previram insurreições populares, caóticos levantes, gente iracunda, insubordinada, semeando pandemônios pelas esquinas. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) caminha para a conclusão do julgamento de Jair Bolsonaro, o “mito” com a vida seguindo seu curso normal, sem as profetizadas – e tão aguardadas - refregas. Reservados, abatidos, os acólitos do “mito”, por enquanto, guardam seu veneno só para si.
Terça-feira, num beco transversal à Sales Barbosa, um deles descansava à sombra, deitado no calçadão. “O maior ladrão do Brasil é Lula”, destilou, subitamente, para os poucos passantes. Teria ele farejado alguma feição petista entre os pacatos pedestres? Pode ser. Queria confusão, briga ou só regurgitar seu desgosto? Ninguém sabe.
Mas, trajando bermuda e camisa surradas, aguardando algum trabalho braçal, não lembrava os clássicos endinheirados que se deram bem no desgoverno do “mito”. Parecia mais um beneficiário de programa social, destes que alavancaram as gestões petistas.
Outro, no Centro de Abastecimento, gracejava com o valor digitado errado numa máquina de cartão: “Não tenho salário de ministro do Supremo para pagar tudo isso”. Os trajes e o jeito de corpo lembravam bastante o que repousava no calçadão. Mas – sem dúvida – cerra fileira entre os patriotas, cristãos, conservadores.
Afora esses dois, nada parecia anormal pela Feira de Santana ao longo da semana. Havia revoadas e revoadas e revoadas de pombos, animado o comércio sem tanto movimento. Tangendo-os, um estridente carro de som que anunciava imperdíveis pen drives com mais de mil músicas. Nas portas das lojas, as palmas e os gritos dos vendedores, despertando sonolentos consumidores.
Enfim, muita modorra para tão anunciados apocalipses. Talvez os feirenses – os brasileiros! - estejam, no fundo, cansados de toda a presepada da extrema-direita.
Desde meados de abril que a Feira de Santana vem sendo razoavelmente bem servida de chuvas. Começou pela Micareta e, com raras interrupções, se estendeu até este setembro que aflora. Junto com a chuva persistente, veio a queda nas temperaturas. Depois de três anos ardentes – nos anos anteriores o calor contaminou até o inverno – o feirense pode experimentar um frio agradável, que em muitas noite chegou até a 16º. Nada para quem vive em regiões realmente frias, mas muito para quem enfrentou meses intermináveis de calor escaldante.
Mas – tudo indica – nos próximos dias o frio arrefece e a Feira de Santana mergulha na estação escaldante que se estende, no mínimo, até meados de março. Com ela até caem algumas trovoadas, mas o calor, implacável, cede pouco. Bom para quem veraneia na alta estação, mas péssimo para quem permanece na labuta, enfrentando manhãs e tardes calcinantes na Princesa do Sertão.
As mudanças climáticas estão se tornando assunto recorrente mundo afora. Há décadas soam os alertas de cientistas e alguns governos, nos últimos anos, estão mais atentos à questão. Mas, no Brasil, prevalecem as visões suicidas do agronegócio e do negacionismo troglodita.
O governo do petê até ensaia uma resistência à truculência anti-ambiental, mas cede logo à frente, atropelado pela claque da mineração, do desmatamento e do negacionismo climático. O que prevalece no Congresso Nacional – e no Brasil – são os interesses do celebrado Centrão.
O cenário nacional se reflete nos níveis subnacionais. Quais estados e municípios, efetivamente, dispõem de uma pauta ambiental e buscam implementá-la? São raros, raríssimos. Nem de plantio de árvore se fala. Os políticos costumam ignorar problemas difusos, cujos impactos negativos são pouco percebidos pela população.
É o caso das mudanças climáticas: o povo reclama das temperaturas, do volume de chuvas, mas por enquanto não os associa claramente à degradação ambiental. Cobrar medidas para as lideranças políticas, então, nem se fala. Mas o fato é que, apesar da chuva lá fora e do frio à noite, os dias de calor estão, mais uma vez, se aproximando na Princesa do Sertão...
Um dos livros mais marcantes que já li foi Gomorra, do jornalista italiano Roberto Saviano. A obra, publicada em 2006, mistura jornalismo investigativo, relato pessoal e literatura, revelando os bastidores da Camorra, a poderosa organização criminosa de Nápoles, no sul da Itália. Pensava que, em alguma medida, o livro antecipava o que poderia acontecer no Brasil, num futuro incerto, caso o crime por aqui adquirisse o status de máfia.
Minuciosa, a obra revela com abundância de detalhes como a máfia transita por diversos setores da economia italiana: do tráfico de drogas ao mercado da moda, passando pela construção civil, pelo comércio de lixo tóxico e até pelo transporte marítimo. A Camorra não se limita a atividades ilegais, recorrendo à economia formal para lavar vultosas somas de dinheiro. O livro – tremendo sucesso editorial – inspirou também um documentário.
Pois bem: a operação realizada pela Polícia Federal semana passada para desmantelar um esquema criminoso de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) deixou-me surpreso. Não supunha que, no Brasil, o crime já movimentasse somas tão vultosas, nem de maneira tão sofisticada e disseminada. Certamente me enganei: por aqui, o crime talvez não tenha suplantado ainda as máfias italianas, mas demonstra que não está tão longe disso.
Note-se que, até o momento, o noticiário é superficial e não traz muitos detalhes. Faltam reportagens de fôlego para revelar minúcias sobre como o crime passou a operar no Brasil. Mas, desde já, sabe-se que um magote de políticos – patriotas, honestos, cristãos, conservadores – talvez esteja envolvido com o esquema. Pode ser que isto explique o ensurdecedor silêncio desta gente sobre a operação.
Ninguém veio a público recitar que “bandido bom é bandido morto”, nem abjurar a corrupção, ou defenestrar as organizações criminosas. Bem esquisito o silêncio. Os tempos, no Brasil, estão estranhos: democratas irredutíveis defendem golpes de estado; patriotas impenitentes abraçam interesses estrangeiros; agora, infatigáveis adversários do crime calam-se diante do crime. Muito estranho. Mas devo estar entendendo errado.
O certo é que o crime atua com desenvoltura, sofisticação e ousadia impressionantes no Brasil. Batedores de carteira, descuidistas, ladrões miúdos de celular operam às vistas e no varejo. Estão, portanto, expostos à sanhas das ruas e dos histéricos apresentadores dos programas Mundo Cão. Os criminosos graúdos, não. Escapam até mesmo dos discursos coléricos nos parlamentos, onde são solenemente ignorados...
Sem o mesmo ímpeto de antes – até porque a escassez de recursos tornou-se crônica – o governo federal retomou o programa Minha Casa Minha Vida, a partir da posse do presidente Lula (PT). Hoje (01) mesmo o governador Jerônimo Rodrigues (PT) e o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), vieram à Feira de Santana para anunciar nova etapa. A Princesa do Sertão foi uma das primeiras cidades a receber o anúncio de obras do programa e uma das pioneiras na inauguração dos residenciais, no final dos anos 2000.
Hoje os imóveis se sucedem, em monótonas fileiras, pela periferia da Feira de Santana. Milhares de famílias deixaram habitações precárias – vivendo sob condições insalubres ou pagando onerosos alugueis para seu nível de renda – e passaram a viver nestes condomínios. Quase todos foram construídos em bairros periféricos, como Aeroporto, Gabriela, Asa Branca, Pedra Ferrada ou Conceição, expandindo os limites urbanos do município.
Naquela época, não demorou para os problemas surgirem. O mais visível deles foi a violência. Concomitante com as inaugurações dos residenciais, as facções criminosas avançavam das cadeias para as ruas, apropriando-se sobretudo destes condomínios. Tráfico de drogas, assassinatos – muitos assassinatos – e até expulsão de moradores integraram-se à rotina dos moradores. Muita gente abandonou os imóveis.
Reclamações sobre a infraestrutura dos condomínios também são corriqueiras, embora sem tanto apelo na imprensa. Vazamentos, infiltrações e problemas elétricos são comuns, queixam-se, desde sempre, diversos beneficiários. Muitos, inaugurados com pompa, ostentam a marca da passagem do tempo e do precário material empregado nas construções, com fachadas manchadas e escurecidas pelo limo.
Distantes das regiões dinâmicas da cidade, esses residenciais oferecem poucas oportunidades de trabalho e exigem uma custosa logística de deslocamento. Serviços públicos essenciais também são precários. Objetivamente, falta transporte, equipamentos de saúde e educação e zeladoria urbana, como iluminação e limpeza. Não é fácil a vida nestes locais.
“Com tanto problema, então, nem deviam ter construído!”, diria um palpiteiro, desses que fazem sucesso nos comentários das mídias sociais. Obviamente, não se trata disso. Trata-se de enxergar a questão habitacional sob uma perspectiva transversal, considerando em seu bojo serviços de saúde e educação, mobilidade urbana, transporte público, o acesso ao trabalho e à renda, além do lazer e – questão central – a segurança pública.
Caso a avaliação de políticas públicas fosse rotina no Brasil, certamente o Minha Casa Minha Vida passaria por aprimoramentos do gênero. Mas – reconheço – por aqui é exigir demais. Afinal, não falta quem pense que investir em habitação popular é coisa de comunista...