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César Oliveira - Crônicas

Sou de todo mundo e todo mundo é meu também

César Oliveira - 13 de Maio de 2019 | 08h 25
 Sou de todo mundo e todo mundo é meu também
Klimt- O Beijo

Entre os que adoram e os que odeiam sua música, um verso dos Tribalistas vai se fazendo ícone gramatical de um modelo de comportamento. O “sou de todo mundo e todo mundo é meu também” é o atual grito de guerra e liberdade sexual e amorosa, se é que podemos falar de amor quando todo mundo é de todo mundo e ninguém é de ninguém. Mais que um jogo de palavras, as entrelinhas, o rito contido nos versos, desnudam a falência do compromisso, das parcerias em comunhão, do sal e do sagrado nos encontros tecidos ao acaso. O amor acabou, ou pelo menos é isso que querem nos fazer crer, afinal o corpo- e meu corpo minhas regras- tornou-se um espaço de compartilhamento sem compromisso, um acampamento de sem terras na alma do outro, e o tema sequer é recomendado ao ofício dos poetas, prestando-se apenas à pobre ocupação dos cronistas dominicais.

Como acontece com todos nós que passamos a envelhecer com o dobro da rapidez de antigamente, cheguei atrasado nesta revolução tribal e “para sempre” me parecia uma ilusão amorosa cabível em todas as bulas, ainda que a serpente e o paraíso tenham nascidos ao mesmo tempo.

Contrário ao inevitável, embora a nação tribalista torne equivalentes os toques, a sensação de re-encontro, e completude de si mesmo no ter o outro, ainda acho que só um(a), único(a), pode completar a tradução final de todos seus ensaios e de todos os sinais que decifram sua linguagem, a sua alma de dia chuvoso.

Porque é assim, sabem as mulheres. Contra todas as probabilidades e as variações da fome, e, às vezes, contra as recomendações técnicas de suas razões e de suas possibilidades, você, “de repente, não mais que de repente”, por uma canção, um olhar, uma dança, um som de violino enfeitiçado, se perde, se deixa domar enlouquecida e indefesa, por aquele outro. Dure cinco dias ou anos.

Quem encontra esse caminho sabe que nunca mais vai poder voltar. Ou, pelo menos, não inteira. Sabe que as pegadas sobre o vento não deixam marcas visíveis ao retorno, que não há fios de Ariadne a conduzir sua salvação. Ao contrário dos outros náufragos, não poderá ser resgatada. E quando rasga a roupa e os limites e prova, enfim, das dores e delícias de ser mulher, descobre a especiaria que é viver. No deslumbramento de loba indefesa, quer apenas ficar na armadilha, e, mesmo sabendo que tudo é renúncia, conjuga senzalas e senhores e não será mais de ninguém, sem ser dele. Ou ele, de uma mulher.

Ainda que se parta, que andeje por todos os lugares, sabe que será aquele seu mestre de cerimônias, referência emocional, e, mesmo sendo tribalmente de todos, ou de um, será em todos, ou em um, ele, ou ela, também.

É a condenação e a glória da paixão. Abandono e perenidade. Letra, música e lágrimas. Como nódoa, não se desvencilhará deste segredo da memória, dos nós, dos dois, porque como sabem a ciência e a filosofia de bar, quem se reparte, só o faz a partir dos seus domínios anteriores, já, todos, possuídos.

Você, se já provou do veneno divino de amar assim e ele acabou antes do fim, por alguma razão ou por falta delas, sabe que existir será apenas um despedir sem fim. A sensação de que falta algo, que inquieta. Quem te encontrar depois, ao contrário da apologia dos tribalistas, saberá que se pode ser só de um, ou de uma, mesmo estando em outro alguém, e que te lerá, apenas como a dor do achado tardio. Porque, como diz Adélia Prado, “o que a memória ama, fica eterno”.



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